Há pouco mais de três anos, numa manhã de segunda-feira que estava longe de ser “mais uma” pra mim, nascia a Clara. Naquele mesmo dia, morria a minha esperança, ainda que velada, de tê-la por parto normal.
Depois de muitas conversas pela metade, consultas frias e argumentos nada convincentes, fui vencida pelo meu obstetra. E lá fui eu andando até o centro cirúrgico, sem nenhum sinal de trabalho de parto, pra fazer uma cesárea eletiva cujo agendamento foi totalmente baseado na comodidade e na agenda daquele médico.
Lembro-me da minha tentativa de disfarçar o nervosismo, da ansiedade, do frio na barriga e do aperto no coração. Eu não sabia o que me esperava lá dentro daquela sala fria, mas de uma coisa eu tinha certeza: eu queria muito ter a companhia de alguém que realmente conhecesse, que confiasse, que compartilhasse daquela alegria, medo e emoção comigo. Essa pessoa era o meu companheiro, o pai da minha filha, mas ele não pôde entrar, mesmo depois de todos os meus pedidos – quase súplicas.
As justificativas do tal médico, como sempre, eram as mais “injustiticáveis”. Coisas como “pai no centro cirúrgico só serve pra desmaiar e dar trabalho” (acompanhada de um sorriso “engraçadão’) e “pra que correr o risco de uma contaminação?” foram alguns dos seus argumentos.
Eu nem sabia na época, mas naquele momento eu estava sendo violada duplamente. Primeiro porque, por lei, toda mulher tem o direito de ter um acompanhante de sua escolha durante todo o atendimento do pré-parto, parto e pós-parto. É lei! Segundo porque, independente da lei, proibir uma mulher de ter um acompanhante e um pai de ver sua filha nascer é, na real, uma tremenda de uma crueldade.
Eu também não sabia, mas eu entrava ali nas estatísticas – assustadoras e muitas vezes invisíveis, da violência obstétrica no Brasil, as mesmas estatísticas que dizem que pelo menos uma a cada quatro mulheres sofrem algum tipo de abuso ou constrangimento durante o parto aqui na país. A cesárea eletiva contra a minha vontade e a proibição do acompanhante durante a cirurgia foram apenas as primeiras. Depois vieram os cochichos e comentários amedrontadores da equipe no centro cirúrgico, os braços amarrados que praticamente me impediram de tocar a minha filha logo após o nascimento e a nossa separação segundos depois, adiando o início do vínculo mãe-filha nesse primeiro contato da sua nova vida.
Algumas pessoas podem pensar que eu tive sorte. Que outras mulheres passam por situações muito piores e por violências ainda mais cruéis e marcantes durante o parto. A segunda afirmação é verdadeira, infelizmente. Mas me recuso a pensar que “tive sorte”. Depois de tudo o que eu li, escutei e aprendi nesses últimos três anos, me recuso a me conformar com a velha história de que “dos males o menor”. Sim, eu passei por aquilo sem grandes traumas, aparentemente, talvez porque tenha me negado a assumir o papel da vítima ou reclamar, já que a minha filha estava ali, linda e saudável, apesar dos pesares. A ignorância, de certa forma, foi minha aliada durante muito tempo.
Mas afirmar que tive sorte seria como dizer que “tudo bem outras mulheres passarem pelo que passei, faz parte”. Não, eu não quero que outras mulheres lhe tenham negado seus direitos, que outras mulheres sejam forçadas a aceitar esse ou aquele modo de parir, que lhe digam que ela não pode, que não consegue, que não pode escolher. Essa é uma realidade que eu espero ver mudada. E com urgência!
E eu acho que o primeiro passo para acabar com a violência obstétrica, assim como todas as outras formas de violência, é aceitar que ela está aí, completamente instalada e enraizada. É também falar sobre ela, informar, esclarecer o maior número possível de pessoas – não só mulheres. Assim como eu, quantas outras foram e são vítimas da violência obstétrica diariamente sem sequer saberem disso? Quantas mulheres aceitam o discurso dos agressores e sofrem os efeitos dessa violência em silêncio, inclusive por acharem que a culpa provavelmente seja delas mesmo?
Além destas que eu relatei, existem inúmeras outras formas de violência no parto, como:
– Episiotomia (corte do períneo para “facilitar” a saída do bebê) indiscriminada e sem autorização da mãe
– Infusão intravenosa para acelerar o trabalho de parto (ocitocina sintética)
– Pressão sobre a barriga da parturiente para empurrar o bebê (manobra de Kristeller)
– Tricotomia (retirada dos pêlos pubianos)
– Proibir a mãe de beber ou comer durante o TP
– Exame de toque frequente
– Impedimento da livre movimentação da gestante durante as contrações
– Frases agressivas, do tipo “se você não parar de gritar, eu não vou mais te atender” ou “na hora de fazer não gritou”
Os efeitos da violência obstétrica podem ser muito sérios, causando inclusive depressão pós parto, problemas na sexualidade da mãe e dificuldade pra ela cuidar do recém-nascido.
Pra mudar isso, felizmente, muita gente tem se mobilizado no Brasil. O debate tem alcançado níveis cada vez mais amplos e ganhado cada vez mais destaque. Agora, essa luta no Brasil acaba de ganhar um importante apoio. Nesta última terça-feira, dia 23 de setembro de 2014, a Organização Mundial da Saúde (OMS) tornou pública, em português, uma declaração oficial para a PREVENÇÃO E ELIMINAÇÃO DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA NAS INSTITUIÇÕES DE SAÚDE de todo o mundo! É a oficialização de uma preocupação que há tempos já era habitava a OMS. E pra provar que o Brasil é um importante polo estratégico pro debate sobre os abusos e maus-tratos que as mulheres sofrem na assistência ao parto, nosso português foi uma das cinco línguas, além do inglês, escolhidas para tradução e publicação dessa declaração.
Então, convido vocês a acessarem essa declaração, que pode ser lida e baixada neste link -> http://goo.gl/uIqLtn. Lá nós podemos conhecer mais sobre essa iniciativa e como podemos incentivar e cobrar melhor atendimento às mulheres durante o parto. Esse pode ser um bom ponto de partida pra você saber mais sobre a violência obstétrica e, quem sabe, ajudar a denunciá-la, preveni-la e combatê-la daqui em diante. Como eu disse, a informação é o princípio para mudarmos essa triste realidade, que tem grandes chances de rondar a sua também. Acredite, essa é uma causa de tod@s nós!
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* As imagens (chocantes) que ilustram esse post fazem parte do projeto fotográfico 1:4, da fotógrafa Carla Raiter e da produtora cultural Caroline Ferreira. Os depoimentos – e cicatrizes – reais coletados e retratados nas imagens buscam “materializar as marcas invisíveis deixadas por esse tipo de violência”, segundo as próprias idealizadoras. Para conhecer melhor o projeto e ter acesso a galeria completa de fotos, acesse o site oficial do 1:4.
1 comment
[…] não pode escolher. Essa é uma realidade que eu espero ver mudada. E com urgência!” , esse desabafo foi feito pela Mari do blog Caderninho da Mamãe, no seu relato sobre a violência sofrido antes e […]